sexta-feira, 3 de setembro de 2021

TERRA SONÂMBULA - Parte 2 - Fuvest 2022


Terra Sonâmbula  /  Parte 2

Por outro prisma, a relação fraternal entre os dois personagens também é uma constante no livro, sobretudo porque ambos acolhem-se como pai e filho – ou tio e sobrinho. Em meio a essa relação, Muidinga busca sempre  suas raízes, descobre que o velho o tirou de uma vala de um campo de desabrigados onde jogavam crianças mortas. Ao ver que o menino estava vivo, Tuahir o salva. Todavia, ele não se lembra de nada disso, pois o velho o levou em um feiticeiro para que ele esquecesse o seu passado, o que acaba por não funcionar no momento em que o pequeno termina de ler os cadernos de Kindzu e descobre a sua origem.

No que se refere aos cadernos lidos por Tuahir e Muidinga em seu cotidiano solitário e faminto, Kindzu é escritor e protagonistas dessa história, narrada em forma de diário. Dentre os principais temas tratados,  em primeiro lugar, o desenraizamento do lugar de origem. Kindzu, ao ver o seu mundo tradicional se desestruturar com a guerra civil, sente-se perdido e quer procurar novos lugares. A consequência disso é um desprendimento de sua terra natal.

Esse desprendimento não vai ser bem compreendido pelo seu pai, mesmo esse estando morto. Aí partimos para um segundo tema recorrente no romance: relação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Uma ideia que pode parecer estranha à ocidentais cristãos, mas demonstra o modo de pensar a vida e a morte na tradição moçambicana, visto que o contato entre os dois mundos ocorre sem estranheza. Os exemplos disso são muitos ao longo do livro. Entre eles há um no Segundo Caderno de Kindzu, quando Kindzu conversa com seu pai falecido através de um sonho. 

Nesse exemplo também se percebe um terceiro tema recorrente na obra: a importância dos sonhos na tradição moçambicana. Nos Cadernos de Kindzu nota-se a importância dos sonhos constantemente para a organização dos caminhos a serem seguidos. Kindzu afirma que “O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos”.

Um quarto tema está associado a podermos visualizar a importância da relação entre pai e filho, porquanto nos cadernos de Kindzu o pai aparece como uma figura importante e presente. Tanto assim, que Kindzu apenas começa a se sentir perdido em sua terra natal após a morte de seu pai, já considerava sobre si mesmo que: “Minha alma era um rio parado, nenhum vento me enluava a vela dos meus sonhos. Desde a morte de meu pai me derivo sozinho, órfão como uma onda, irmão das coisas sem nome” .

Outro importante tema tratado nos cadernos de Kindzu é o da sociedade racializada. Várias vezes é possível perceber as diferenciações raciais existentes na sociedade moçambicana. A partir dessa relação de Kindzu com o indiano Surendra Valá também percebemos a influência da cultura muçulmana e indiana na região, resultando nas tradições suailis. Um excerto que ilustra isso bem é quando Kindzu faz referência “aos perigos” dele se relacionar com um indiano. “Surendra sabia que minha gente não perdoava aquela convivência. Mas ele não podia compreender a razão. Problema não era ele nem a raça dele. Problema era eu. Minha família receava que eu me afastasse de meu mundo original. Tinham seus motivos. Primeiro, era a escola. Ou antes: minha amizade com meu mestre o professor. [...] Pior, pior era Surendra Valá. Com o indiano minha alma arriscava se mulatar, em mestiçagem de baixa qualidade (COUTO, 2007: 24-25).”

Um sexto tema importante dos cadernos é a presença das mulheres e as possibilidades de atuação feminina em um contexto machista. Essa atuação pode ser percebida, por exemplo, quando Carolinda faz uso de sua posição para tentar matar sua irmã, Farida.

A rigor, os temas históricos que aparecem no romance seriam: a independência (expresso na figura de Junhito); a guerra civil; os campos de refugiados; os bandos armados; a corrupção (exemplificada na cidade de Matimati e na personagem Assane); o contexto ideológico influenciado pelo marxismo (administrador); e a figura do colonizador (Romão Pinto).

 Kindzu é Muidinga e vice-versa;através do relato contado, Kindzu reencontra o pai e com ele se reconcilia, e Muidinga encontra em Tuahir o pai que procurava. A cada momento as narrativas de Kindzu e Muidinga vão se tocando e se entrelaçando. Sente-se esse entrelaçamento a partir do momento em que surge no relato a personagem Farida. Ela aparece nos cadernos de Kindzu, conta a sua história e diz que está a procura de seu filho Gaspar. Kindzu se apaixona por Farida. Levada pelos acontecimentos, Farida se isola em um barco que se encontra encalhado, abandonado, como se fosse um barco fantasma. Nesse navio, os dois se encontram e relatam seus sonhos um para o outro. Esse navio pode simbolizar os sonhos impossíveis, uma vez que se encontra encalhado e abandonado como um navio fantasma: 

Ao fazer referência a corrupção que ocorria em seu país durante o contexto de guerra, Kindzu escreve em seu sexto caderno que Farida queria conhecer mais, saber o motivo da guerra, a razão daquele desfile de infinitos lutos. Relata que lembrou as palavras de Surendra, que diziam que tinha que haver guerra, tinha que haver morte.

E tudo era para quê? Para autorizar o roubo. Porque hoje nenhuma riqueza podia nascer do trabalho. Só o saque dava acesso às propriedades. Era preciso haver morte para que as leis fossem esquecidas. Agora que a desordem era total, tudo estava autorizado. Os culpados seriam sempre outros.

Com esse excerto fica compreensível o modo como a guerra facilita a ação de um governo desorganizado e corrupto em um país. Nesse sentido, outro personagem que ilustra a ação corrupta em um país em estado de guerra é Assane, já que exemplifica as possibilidades de corrupção que isso permite aos funcionários. O próprio machimbombo onde Kindzu estava se deslocando quando morre queimado era fruto de uma empresa de Assane que prosperou com esse contexto. Sabemos do advento desse tipo de negócio através das seguintes palavras do último caderno de Kindzu: “Fingi nem reparar. Nossa empresa? Então, o negócio já se expandira? Afinal, em guerra se pode prosperar mais rápido que em normais tempos de paz” 

A obra retrata a impressão de um contexto histórico em que chega ao fim um mundo uma sociedade e suas tradições específicas, sem dar grandes projeções de um novo mundo próspero. Apenas o que se tem são esperanças de alguns dos viventes desses tempos de guerra. Farida e Kindzu podem ser pensados como analogias de uma geração perdida entre a tradição moçambicana e a cultura imposta pela dominação colonial (Farida) ou entre a tradição moçambicana e o novo país que se estrutura com a independência (Kindzu). Ambos estariam perdidos entre esses mundos e tentando se encontrar após a dominação colonial.
 
No seu Quinto caderno, Kindzu escreve:
Entendia o que me unia àquela mulher: Pensava sobre as semelhanças entre mim e Farida. Nós dois estávamos divididos entre dois mundos. A nossa memória se povoava de fantasmas da nossa aldeia. Esses fantasmas nos falavam em nossas línguas indígenas. Mas nós já só sabíamos sonhar em português. E já não havia aldeias no desenho do nosso futuro. Culpa da Missão, culpa do Pastor Afonso, de Vírginia, de Surendra. E sobretudo, culpa nossa. Ambos queríamos partir. Ela queria sair para um novo mundo, ela queria desembarcar numa outra vida. Farida queria sair da África, eu queria encontrar um outro continente dentro da África. Mas uma diferenças nos marcava: eu não tinha a força que ela ainda guardava. Não seria nunca capaz de me retirar, virar costas. Eu tinha a doenças da baleia que morre na praia, com os olhos postos no mar.
 

 Continua na Parte 3

 

 

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