segunda-feira, 6 de setembro de 2021

TERRA SONÂMBULA -(3°)final


 Parte 3 - o final.

Quanto às características que perpassam toda a obra (tanto os Capítulos, quanto os Cadernos de Kindzu), destacamos duas. A primeira delas seria a interligação e, às vezes, indissociação entre o ser humano e os elementos da natureza. Vemos isso quando Junhito vira galinha, quando Kindzu fica com escamas entre as mãos para poder remar, ele “se peixava”, ou ainda quando o homem que captura Tuahir e Muidinga vira semente. E nada disso que, para nós pode parecer estranho, ganha conotação de algo irreal ou impossível no livro. Exemplos como esses se repetem muitas vezes durante a obra, tanto nos capítulos sobre a “estrada morta” quando nos Cadernos de Kindzu.

 
A segunda característica que perpassa toda a obra e que é uma característica do autor é o uso de neologismo. Mia Couto escreve muitos neologismos em seu texto. Ao longo de todo o livro lemos novas palavras que se encaixam perfeitamente para explicar o relato de Mia Couto. Por exemplo, na página 59 há duas frases onde aparecem três palavras novas: “A canoa se ondeava, adormentada em águas perdidas. Meu peitobumbumbava, acelerado” (COUTO, 2007: 59). São muitas as palavras que aparecem ao longo da obra para darem sentido ao texto e possibilitar que imaginemos o cenário com maior nitidez. Assim, também são exemplos de neologismos que aparecem ao longo do texto:, doidoendo, pensageiro, calcorrear, sozinhidão, saltinhadores, , calafriorento, choraminguante, cambalinhando, deslocalizara, infanciando, inaposento, desbotura, desencostadas, passarinhando, saltinhador, timiudamente, dormitoso, pernalteava, cantarinhar, lamentochão, desmeiada, escãozelada, nenhures, direitamento, facocherando, miraginações, administraidor, descaminhei, desexistir, descaminhou.
 
Nestes cadernos, o protagonista se acha também numa viagem em busca de transformação. Kindzu quer ser um naparama, um guerreiro mágico, nos cadernos apresenta seu pai, o velho Taímo, que tinha sonhos premonitórios e fantásticos. O velho Taímo morre após a independência de Moçambique. Kindzu, assim como o pai, também tem sonhos que se misturam à realidade. Sonhos que são premonitórios. Ter sonhos, aqui, significa como ter ainda esperança. O sonho está ligado à utopia, ao desejo de mudar. 
 
 Farida  pede a Kindzu que encontre seu filho Gaspar, e ele parte novamente para o continente em busca do filho de Farida. Começa então uma outra viagem, agora de resgate. Em ambas as viagens, tanto de Muidinga quanto de Kindzu, há uma vontade de construir uma identidade. Muidinga para isso quer encontrar seus pais, Kindzu quer se tornar um naparama, um guerreiro que poderia lutar por seu povo. Ambos personagens acabam voltando a lugares já percorridos, no entanto, nunca os vêem com o mesmo olhar. Sempre há uma mudança, não no lugar e sim no observador, no viajante.
 
Conclusão
O narrador é onisciente,3ª pessoa, narra e convida o leitor a não ser passivo diante das atrocidades reais como a guerra.
 
Muidinga : protagonista da 1ª história, personagem redonda que se transforma externa e internamente.
De inerte, torna-se um ser pensante e sujeito crítico ao entrar em contato com a leitura e a escrita.
 
Kindzu: protagonista da segunda história, em 1 pessoa, inicia sua transformação a partir da morte do irmão, Junhito. Seu objetivo é tornar-se um naparana.Em sua caminhada resgata as tradições do povo , através da contação de histórias.
 
 Não há personagens planos, todos são redondos... transformam-se no transcorrer da narrativa.
 
O título do Livro Terra Sonâmbula ganha um sentido importante ao longo da obra. É aquela terra que não está nem dormindo e nem acordada, ela sonha em um ambiente onde o marasmo, a esperança do fim da guerra e a miséria própria da guerra se fazem presentes, assim resta aos habitantes sobreviverem. É nesse cenário de guerra que aparecem pessoas que vagam famintas e onde a leitura de uma história pode ser um alento para sua sobrevivência. 
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 São várias viagens realizadas no desenvolvimento da obra. Em seus cadernos, Kindzu empreende uma viagem iniciática, assim como Muidinga ao lê-los. E este, juntamente com Tuahir, viaja nos escritos dos cadernos, e nos ensinamentos de Tuahir, a fim de completar a sua viagem. 
No final,  a viagem de Tuahir para a morte, que é caracterizada de uma forma ritualística, pois Muidinga o coloca em uma canoa para que ele seja levado pelo mar. “A barca é o símbolo da viagem, de uma travessia realizada seja pelos vivos, seja pelos mortos.” .
 
 Poeticamente construída, essa passagem de Terra Sonâmbula  consegue transformar a morte em um momento mágico e sublime ao som do mar e das gaivotas. Liberado desse mundo real, Tuahir agora é embalado pela fantasia que se espalha pelas águas de um mar de sonhos. As ondas vão subindo a duna e rodeiam a canoa. A voz do miúdo quase não se escuta, abafada pelo requebrar das vagas. Tuahir está deitado, olhando a água chegar. Agora, já o barquinho balouça. Aos poucos se vai tornando leve como mulher ao sabor de carícia e se solta do colo da terra, já livre, navegável. Começa então a viagem de Tuahir para um mar cheio de infinitas fantasias. Nas ondas estão escritas mil estórias, dessas de embalar as crianças do inteiro mundo. ( p. 235) 
 
Atente-se que não é o mundo inteiro, mas o “inteiro mundo”. A colocação desse adjetivo, antecedendo ao substantivo, tem nessa narrativa uma sutil diferença, que traz um importante significado ao contexto. É um mundo que se faz inteiro ao aliar a fantasia, o sonho, as estórias contadas, a tradição, à realidade circundante do presente mundo globalizado. Ao fazer essa junção, tem-se um mundo completo e não fragmentado, um “inteiro mundo”. É nas crianças, que se mesclam a fantasia e a realidade, que reside a esperança desse mundo que se fará inteiro. Nelas é que estão os sonhos de esperança para essa terra escalavrada pela guerra. Então, a viagem empreendida pelos personagens de Terra Sonâmbula (1993) ultrapassa o romance e se configura como uma viagem coletiva.
 
Há ,enfim, o encontro do velho com o novo. A tradição que é semeada no futuro. Nasce junto com Muidinga a esperança de um novo tempo,repleto de sonhos, de fantasias, no qual a estrada esteja viva e dê passagem aos sonhadores, viajantes da terra. Muidinga nasce de novo ao descobrir a sua identidade; e Moçambique precisa reafirmar sua identidade descobrindo novamente sua cultura, suas tradições, não deixando morrer o velho em detrimento do novo: ao contrário, fazendo com que toda uma sabedoria do passado seja terreno fértil para receber as sementes do futuro. Nas páginas de Terra Sonâmbula , Mia Couto semeia a esperança de um futuro, no qual Moçambique, seja a terra dos sonhos de cada moçambicano: unidos e fortificados pela tradição, ligados à cultura global.
 
A construção da identidade como parte da viagem : isso é o que se percebe nas páginas de Terra Sonâmbula . Personagens que transitam do sonho para o pesadelo da realidade, que choca e paralisa. Percepções que vão se modificando, à medida que a narrativa avança. O olhar já não é mais o mesmo porque, no caminho, algo foi modificado, não fora, mas dentro do indivíduo que caminha. É o viajante que se modifica e não a paisagem ou o outro. Quem viaja, larga muita coisa na estrada. Além do que larga na partida, larga na travessia. À medida que caminha, despoja-se. Quanto mais descortina o novo, desconhecido, exótico ou surpreendente, mais liberta-se de si, do seu passado, do seu modo de ser, hábitos, vícios, convicções, certeza. Pode abrir-se cada vez mais para o desconhecido, à medida que mergulha no desconhecido. 
 
A oralidade ( contação de histórias) representa, na narrativa, o elo de ligação entre a tradição e o moderno, pois Muidinga é partícipe da cultura letrada mas também da cultura que se perpetua pela oralidade. Então, é em Muidinga, que reside a esperança de um futuro de paz e sonhos para essa terra. A criança que une o passado e o presente, através do que lhe contam seus antepassados e através da literatura escrita.
 
 Assim como o sonho faz viver a estrada é o contar histórias que cria os sonhos. Mia Couto conta um história em que o personagem sonha, e é sonhado pelo leitor, pelo ouvinte. Tuahir e Muidinga são ao mesmo tempo narrador e ouvinte. Muidinga é também leitor, assim como o leitor de Mia Couto será leitor, ouvinte e sonhador dessa narrativa.
 
Gizelda
* Terra Sonâmbula , Mia Couto
* www.africaeafricanidades.com
* Raquel Braun Figueiró - Professora Estadual de História, Mestre em História pela UFF e Especialista em História da África pela FAPA.
*Nau Literária, Carlos Batista
 
 

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